Androides não Choram

Androides não Choram

 

Nota da escritora: As minhas críticas e comentários podem e certamente conterão muitos spoilers sobre a história. Se não quiser sofrer com isso, leia o resumo da crítica no início da página.
 
Androides não Choram
Autor: Mauro Judice
Editora: Vivacqua
Primeira publicação em: 1999
Capa:
 
Resumo da crítica: Sobre a história, o autor narra um mundo pós-apocalíptico e futurista, onde os seres humanos foram extintos por um terrível dilúvio e, 300 anos depois – tempo que em ocorre a narração – o planeta é dominado pela chamada raça azul, composta pelos androides criados pelos humanos e que, ao contrário de seus criadores, sobreviveram à inundação do planeta. O título do livro dá-se devido a uma característica peculiar dos androides: eles não possuem glândulas lacrimais, e, por isso, não choram. Além desse aspecto, os androides diferenciam-se dos humanos em apenas um ponto: a pele azulada; de resto, são absolutamente iguais a seus criadores. A narração começa com o primeiro julgamento de um androide na história da raça azul, que, sendo perfeita e tendo formado uma civilização ideal e sem diferenças sociais, jamais havia necessitado julgar alguém por um crime, nunca outrora cometido na sociedade. O androide acusado está sendo julgado por admirar e espalhar a filosofia e o pensamento humanos, intensamente repudiados pela civilização androide. É uma história emocionante, que inova na concepção de extermínio dos seres humanos, que sempre perecem nas histórias através de catástrofes, que variam entre uma infecção zumbi, e uma guerra nuclear ou um ataque alienígena. Dessa vez, a extinção dos homens deu-se pelo simples fato de que eles haviam encontrado a satisfação na espiritualidade e, por isso, não lutaram contra seu derradeiro fim ao ocorrer a inundação. O texto possui uma narrativa incrível, gostosa de ler e envolvente, o autor possui um vasto vocabulário, que acaba por enriquecer a leitura, e o final da narrativa emociona e surpreende; porém, peca em alguns pontos específicos, como os inúmeros erros de digitação que, provavelmente, ocorreram por uma revisão malfeita (ou até mesmo pela falta de uma) por parte da editora; alguns mistérios formulados durante a narrativa não são desvendados ao final do livro, deixando pontos importantes muito vagos e sem explicação, e o livro aborda um tema bastante específico, que acaba por agradar a apenas um público determinado e pré-estabelecido. A história, em resumo, é uma clara defesa à busca pela espiritualidade, narrada de forma envolvente, utilizando-se de um cenário futurista e bastante diferente. Uma história que possui um lindo caso de amor e uma linda evolução no ser, que pode se apresentar em cores róseas e carne, ou cores azuis e pele sintética. Um contexto que pode ser aplicado ainda agora, em nossos dias atuais, e que nos ensina que o ser não encontra satisfação em uma sociedade perfeita e um mundo evoluído, mas sim na busca por algo além disso, algo que alimente nossas almas e que nos eleve o espírito. Os androides não choram, mas eu certamente chorei lendo essa linda narração.
Crítica completa:
   Primeiramente, gostaria de começar expressando a indignação que tenho por ter encontrado tal livro por um preço tão baixo que, certamente, não expressa em nada o real valor do livro. Comprei-o na Bienal do Livro de São Paulo, agora em agosto de 2012, pela bagatela de 3 reais, em um estande de livros desconhecidos, variados e todos sendo vendidos por esse mesmo preço. O título do livro me chamou a atenção assim que bati o olho nele, e, já que encontrava-se tão barato, achei que valeria a pena arriscar a compra-lo, e, a meu ver, valeu e muito!
   Continuo, porém, apontando um defeito muito severo na publicação. A edição que adquiri foi a primeira, e não sei se houve outras edições impressas, porém essa em específico certamente não sofreu revisão alguma por parte da editora  - esta lançou o livro com terríveis erros de concordância que, obviamente, foram cometidos por erros de digitação, mas que incomodavam um pouco a leitura. Houve, inclusive, um parágrafo em que suspeitei terem comido uma linha, pois ele não fazia o menor sentido em sua estrutura. Por ser um autor desconhecido, acredito que a editora não tenha dado a devida atenção a essa etapa, que é sempre muito importante em uma publicação, pois erros acontecem, como provado nesse livro. Um ponto negativo, a meu ver, mas que não tirou de todo o brilho da obra.
   Há também que se fazer um comentário sobre o extenso e difícil vocabulário de Mauro Judice. O autor utiliza palavras nunca vistas por mim anteriormente e, surpreendentemente, apesar das palavras pomposas, ainda consegue deixar a leitura agradável e interessante.
   Sobre a história, o autor narra um mundo pós-apocalíptico e futurista, onde os seres humanos foram extintos por um terrível dilúvio e, 300 anos depois – tempo que em ocorre a narração – o mundo é dominado pela chamada raça azul, composta pelos androides criados pelos humanos e que, ao contrário de seus criadores, sobreviveram à inundação do planeta. Esses androides possuem o aspecto idêntico ao de um humano comum, com órgãos internos sintéticos e toda a mesma estrutura física, porém diferenciam-se em dois pontos: o primeiro, eles têm a pele azulada, e, por isso, a denominação de raça azul; o segundo, eles não possuem a necessidade de umedecerem os olhos, não tendo glândulas lacrimais, e, portanto, androides não choram.
   A história começa com o primeiro julgamento de um androide na história da raça azul, que, sendo perfeita e tendo formado uma civilização ideal e sem diferenças sociais, jamais havia necessitado julgar alguém por um crime, nunca outrora cometido na sociedade. O androide acusado está sendo julgado por admirar e espalhar a filosofia humana, intensamente repudiada pela civilização androide. Durante o julgamento, comandado por Aldoo, um importante construtor da sociedade azul, é explicado o fim da raça humana, que, na época de seu extermínio, havia atingido um grau de espiritualidade tão grande a ponto de abandonar qualquer apego aos bens materiais, às tecnologias, às desavenças e às cobiças ao poder. Os humanos, como descritos por Aldoo no ponto de vista dos androides, tornaram-se apáticos, frios, solitários, e pereceram durante o dilúvio por não quererem fazer uso da tecnologia para se salvar, aceitando que a vida terrena é apenas parte da evolução de espírito e, portanto, não havia motivos para temerem a morte. Dessa forma, o pensamento humano foi repudiado pelos androides, que viam nele um instinto de autodestruição e, o pior de tudo, a negação da tecnologia. E os androides nada mais eram do que tecnologia! Aceitar a filosofia humana seria como negar a própria existência. Ao final do julgamento, Aldoo considera o réu como culpado, e a população androide vê com surpresa a morte do primeiro androide, que eram imortais, em 300 anos. A execução ocorre na chamada Máquina Generativa, onde anteriormente os humanos davam vida aos androides, e que seria pela primeira vez utilizada para degenerar, e não gerar.
   Essa parte da narração me fascinou, e muito ! Mauro Judice inovou em sua concepção de extermínio dos seres humanos, que sempre perecem nas histórias através de catástrofes, que variam entre uma infecção zumbi, e uma guerra nuclear ou um ataque alienígena. Dessa vez, a extinção da raça humana deu-se pelo simples fato de que eles haviam encontrado a satisfação na espiritualidade e, portanto, morreram, de certa forma, por escolha própria, sem que isso fosse um mal, mas fosse apenas mais uma etapa na escala de evolução do espírito. Um conceito bastante abstrato para leitores ateus, mas inegavelmente inédito.
   Depois da execução, conhecemos um pouco mais outro personagem muito importante na história, talvez o mais importante de todos: a única humana remanescente na face da Terra, encontrada em uma tribo indígena da selva Amazônica que havia sobrevivido ao dilúvio, mas que agora, infortunadamente, era atingida por uma doença que os androides não tiveram a capacidade de curar. Somente uma pequena criança sobreviveu, que passou a ser criada por um dos conselheiros dirigentes do planeta, e foi chamada de Djogai. Foi um personagem bastante marcante, pois o autor descreve a humana como sendo extremamente plácida, passiva, com movimentos harmoniosos, completos e sempre calmos. A humana encantava facilmente qualquer androide que a visse, pois transmitia uma aura de paz interior cativante. Essa aura acabou por trazer desconforto à vilã da história, uma das conselheiras dirigentes, Svádanii, bela e perigosa, que durante toda a trama persegue a humana e os androides que procuram erradicar a filosofia humana. Além de Svádanii, um outro androide sente grande desprezo por Djogai... Aldoo, que, num grande e emocionante clichê, mais tarde vem a se apaixonar por ela.
   Continuando na trama central, após a morte do primeiro androide, seus companheiros seguidores do pensamento humano foram considerados rebeldes e se refugiaram em meio à floresta Amazônica. Em determinado momento, Djogai se junta a eles com o único intuito de fugir das tramoias que Svádanii lhe preparava a todo instante, e acaba sendo, também, considerada uma rebelde, embora ela mesma nunca tenha erradicado a filosofia dos homens. Aldoo tornou-se o maior perseguidor dos rebeldes, mas, depois que se apaixona por Djogai, passa a entender aos poucos que a leveza de seu ser remetia à espiritualidade que ela atingiu e que os humanos nada tinham de apáticos e frios. Eram, na verdade, muito pacíficos e introspectivos por estarem sempre em busca do autoconhecimento, e, por isso, o mundo exterior não lhes atingia. Ambos têm um lindo e breve caso de amor, até que Svádanii consegue atingir seu objetivo ao matar a humana; Aldoo ficou arrasado, porém, entendendo, enfim, que a filosofia dos homens servia, na verdade, para preencher o grande vazio que atingia silenciosamente o coração de todos os androides ao redor do mundo, resolve juntar-se ao movimento rebelde e passa a pregar a palavra de Deus por todos os cantos, sem armas, sem rebeldia, desafiando descaradamente a autoridade do governo que oprimia o movimento.
   Um ponto interessante sobre o livro é que nos vemos agoniados sempre que um androide é descrito como em sofrimento. Para nós, humanos, é inconcebível a ideia de haver uma expressão de dor sem a existência de lágrimas, porém androides não choram, e sempre que um deles via-se triste e desesperado, era como se sua angústia não pudesse ser expelida ou aliviada, como fazemos através das lágrimas. É como se a dor do personagem não passasse nunca, apertando dolorosamente com pesar o coração de quem lê. Dizem que as lágrimas servem para tirar do peito o que coração não aguenta mais sentir, e, por isso, era como se o coração dos androides sofresse em dobro, pois não havia nada que aliviasse o sentimento.
   Há um ponto negativo que devo acrescentar ao livro, porém não me sinto muito no direito de fazê-lo, pois isso quebra um pouco a liberdade do autor de escrever sobre aquilo que acredita. O que ocorre é que, algumas vezes durante a narração, o Evangelho e Jesus Cristo são citados na história, como se o cristianismo tivesse sido o responsável por toda a espiritualidade que envolveu a raça humana e que, agora, é admirada e difundida pelos androides rebeldes. O problema é que, a meu ver, o estado de introspecção, de busca do autoconhecimento, de meditação e de compreensão espiritual descritos no livro, não combinam com as práticas cristãs, mas sim com as práticas budistas, por exemplo. Acredito que foi muito falho o autor atribuir essa evolução da humanidade ao cristianismo; se fosse descrita uma evolução espiritual sem estar associada a uma religião específica, estou certa de que todos os que lessem o livro, não importando o seu credo, iriam se identificar com a história. Porém a narrativa fechou-se apenas a isso, e eu, que simplesmente me apaixonei pelo enredo, me decepcionei um pouco com a exclusividade e importância exagerada que seu deu à religião cristã.
   Já no final do livro, Aldoo é preso e o Conselho precisa decidir por sua condenação ou sua libertação. O povo é a favor da absolvição do condenado, pois muitos se sentiram tocados pelas palavras do androide pregador durante suas palestras públicas. Infelizmente, os conselheiros dirigentes estavam em sua maioria tendenciosos pela condenação, sendo que fazia parte desse quadro a cruel Svádanii. Em um dado momento, porém, quando a história encontra-se no derradeiro instante em que a sentença será dada, Svádanii muda seu voto e considera o réu inocente, pois ela o ama e percebe que já foi longe demais. O acontecimento é visto com grande empolgação pela população androide, contudo... eis que ocorre um dos momentos mais tristes da história, quando o conselheiro dirigente principal, que era melhor amigo de Aldoo, também altera seu voto, antes a favor da absolvição, para condenar o réu, puramente por interesses políticos. É bem verdade que, entre os interesses pessoais, havia um interesse nobre de preocupação com a população, mas não nobre o bastante para que o leitor pudesse perdoar a traição. O intrigante, porém, é que o próprio Aldoo consegue perdoar o amigo, inspirado cada vez mais pela busca de paz interior e crescimento espiritual.
   A história termina com Aldoo entrando na Máquina Generativa. Seu corpo é retirado e enterrado, enquanto ele abre os olhos em espírito e vê, perplexo, os acontecimentos ao seu redor. Djogai, então, apareceu à sua frente e, sorrindo-lhe, o abraça, fazendo com que ambos se fundam em uma esfera de luz e vão para o plano espiritual. Alguns anos se passam com os rebeldes ainda em sua busca por liberdade de credo, e, ao final, a filosofia humana domina o planeta e se mostra inofensiva à raça azul, sendo, ao contrário, extremamente importante para preencher o vazio dos corações fúteis e imaturos dos androides.
   O texto possui uma narrativa incrível, gostosa de ler e envolvente. Um ponto fraco, entretanto, é que alguns mistérios formulados durante a narrativa não são desvendados ao final do livro. Há como fazer-se especulações, mas que não são confirmadas em nenhum momento. Um desses mistérios é que a comunidade científica dos androides sempre admirou muito os seres humanos, pois estes haviam criado os androides, sendo que os próprios androides não conseguiam se reproduzir. A raça azul criava protótipos perfeitos, seguindo a risca as instruções de construção dos androides, porém era incapaz de dar vida aos protótipos, façanha conseguida apenas pelos homens. O que eu especulei sobre isso, é que, talvez, por ter alcançado um grau de espiritualidade elevado, o homem conseguiu dar vida aos androides através da alocação de uma alma dentro do corpo sintético, e os androides, sendo descrentes da existência da alma, nunca conseguiram tal feito. Essa especulação é fortemente corroborada por um outro mistério abordado na história. Explica-se que, 200 anos antes da extinção dos humanos, houve uma epidemia muito intensa que matou bilhões de pessoas ao redor do mundo, e, ao que parece, foi depois desse acontecimento que os homens começaram sua busca por espiritualidade, assim como criaram os androides. Há um momento em que Aldoo descobre, então, que a quantidade de pessoas mortas pela epidemia é praticamente a mesma quantidade da população androide mundial, o que poderia confirmar a reposição dessas almas nos corpos androides. Infelizmente, como dito acima, não passam de especulações, pois a história termina sem dar mais explicações.
   A história, em resumo, é uma clara defesa à busca pela espiritualidade, narrada de forma envolvente, utilizando-se de um cenário futurista e bastante diferente. Uma história que possui um lindo caso de amor e uma linda evolução no ser, que pode se apresentar em cores róseas e carne, ou cores azuis e pele sintética. Um contexto que pode ser aplicado ainda agora, em nossos dias atuais, e que nos ensina que o ser não encontra satisfação em uma sociedade perfeita e um mundo evoluído, mas sim na busca por algo além disso, algo que alimente nossas almas e que nos eleve o espírito. Os androides não choram, mas eu certamente chorei lendo essa linda narração.
Por: Ayla Pupo