O Demônio e a Noiva

O Demônio e a Noiva

 

Nota da escritora: Esse é um texto original e a reprodução dele não deve ser feita sem a minha autorização. Por favor, respeite meu trabalho.
 
 
O Demônio e a Noiva

 
   Bianca acabara de sair da escola. O céu negro da noite estava banhado de belas estrelas que brilhavam timidamente em meio à poluição. Caminhando em direção ao ponto de ônibus, Bianca olhou para o firmamento escuro que se estia para além do horizonte acima de sua cabeça. A lua cheia deixava a rua um pouco mais iluminada, um pouco mais pura. Sorriu, imaginando como era belo o período noturno. Voltou os olhos para frente, prestando atenção para onde os pés a levavam e observando o canto escuro das casas e lojas, atenciosa a qualquer sinal de perigo. Chegando no ponto, sentou-se em um dos bancos e colocou o material sobre as pernas. Um vento frio e forte bateu de repente, fazendo com que Bianca se encolhesse. Fechou os olhos, evitando a poeira que se levantava. Logo o vento parou e ela respirou aliviada, agradecendo pelo fato de que o frio se fora com ele. Passou as mãos nos curtos cabelos loiros, ajeitando-os, já que foram despenteados pela ventania intensa. Olhou para a esquerda, o lado de onde o ônibus apareceria, e ficou a esperar por alguns minutos, espiando de relance as estrelas e, vez ou outra, sorrindo, admirando a doçura da lua. 
   Um barulho de motor roncou aos poucos no meio da noite, denunciando que o transporte coletivo se aproximava. Bianca levantou-se e esticou o braço que não segurava os livros, fazendo sinal para o ônibus parar. Ele parou ao seu lado e Bianca subiu as escadas com pressa, ansiosa para chegar em casa e descansar. Quase não havia pessoas. Aproximou-se da roleta e pagou sua passagem, dirigindo-se para o fim do ônibus e sentando-se.
   As ruas e casas passavam velozes pela janela conforme o transporte se locomovia. Bianca distraía-se pensando em bobagens ou revisando o que aprendera durante o dia. Dessa forma, não reparava quando as pessoas desconhecidas entravam ou saiam. Olhou para uma das mãos, admirando-a e observando alguns detalhes que nunca tinham sido reparados antes. Nunca soubera o quanto achava sua mão bonita. O tempo corrido da faculdade e do trabalho tirava todas as oportunidades de passar um instante consigo mesma, relaxando e conversando com a própria consciência. Pensava nessas coisas quando ouviu uma mulher pedir licença e sentar-se ao seu lado. Olhou para a moça e não pôde deixar de ficar surpresa. A estranha estava usando um vestido de noiva, novíssimo e muito bonito, aparentando ter sido muito caro. No peito, havia várias manchas grossas e escuras. Manchas vermelhas, parecidas com sangue. O véu na cabeça estava rasgado, mas um pedaço ainda se matinha preso na tiara enfeitada de flores já murchas. Os cabelos ruivos e encaracolados haviam sido bagunçados e emaranhados. O buquê em sua mão não continha mais nenhuma flor, sendo apenas um amontoado de galhos. E seus olhos pareciam tristes, completamente vazios. As olheiras denunciavam um choro constante que parara apenas por aquele momento no ônibus. Nas bochechas, algumas marcas de lágrimas secas a deixavam com o aspecto mais infeliz do que já podia ser.
   Bianca olhou a noiva de olhos arregalados. Não reparou que estava sendo indiscreta e acabou sendo percebida pela mulher ao seu lado. A noiva a encarou e Bianca desviou o olhar, abaixando a cabeça e tentando disfarçar, mas a mulher, de repente, disse:
- Eu estou horrível, não estou ?
Bianca virou-se para ela, não entendendo a pergunta. A mulher repetiu:
- Eu estou horrível, não estou ?
   Olhando para os olhos da estranha, Bianca não soube o que responder. Reparou mais uma vez em toda a situação física da mulher e concluiu que ela, realmente, estava horrível. Pensou em dizer algo que pudesse consolá-la e, quando ia abrir a boca para falar, a noiva continuou:
- Eu sei que estou... olha o meu estado... – fazendo uma careta, ela tentou segurar as lágrimas, mas estas logo desceram em direção à sua boca. Abaixando a cabeça, ela colocou uma das mãos no rosto, tentando amenizar o barulho que seu choro infeliz provocava.
   Bianca ficou sem reação mais uma vez. De certa forma, sentia pena daquela mulher, mesmo não sabendo quem ela era ou o porquê de estar suja de sangue. Podia sentir também um estranho medo. Um medo que só crescia em seu peito, fincando raízes no coração, conforme os soluços abafados da noiva vinham até seu ouvido.
   Logo a estranha mulher ao seu lado aquietou-se e enxugou as lágrimas com as costas da mão. E continuou:
- Ai, me desculpe... você nem me conhece. Me desculpe... – e balançou a cabeça negativamente, como se reprovasse a si mesma. – Meu nome é Katarina. E o seu ? – perguntou forçando um sorriso tímido.
   Bianca pensou por alguns segundos, refletindo se queria ou não ter uma conversa com a noiva maluca.
- Eu sou Bianca. – e também forçou um sorriso sem graça. – O que aconteceu ?
   Ao ouvir a pergunta, a noiva sorriu mais uma vez e disse com pressa, com a voz embargada de decepção e aborrecimento misturados com alguma coisa:
- Homens... vivem nos prometendo um mundo de maravilhas e, quando menos esperamos, nos apunhalam pelas costas e nos deixam no meio do altar, sozinhas, chorando por ter ouvido um "não" ao invés de um "sim".
   Bianca aquiesceu. Como suspeitara, era uma noiva louca e frustrada. Lembrou-se das manchas que pareciam sangue no vestido de noiva e pensou no pior: a vingança de uma mulher deixada para trás. Engoliu em seco e não disse mais nada. Seria melhor que a conversa terminasse ali.
   O ônibus foi seguindo seu trajeto normalmente e Bianca não trocou mais nenhuma palavra com a noiva frustrada de nome Katarina. Passou a prestar mais atenção às pessoas que entravam e saiam do transporte já cheio. A maioria era estudantes como ela ou trabalhadores que chegavam tarde em casa, matando-se que nem loucos em seus postos de trabalho, apenas para ganhar uma mixaria e alimentar a pele sofrida dos filhos e esposas. Bocejou, cansada da vida corrida que levava e ignorou por um tempo a estranha ao seu lado. Estava mais uma vez distraída quando o ônibus parou em um ponto e pegou um homem, todo envolto por uma capa preta. Sentiu a noiva Katarina mexer-se inquieta ao seu lado, mas não disse nada e continuou a ignorá-la. A noiva mostrou-se mais uma vez impaciente e começou a balbuciar algumas palavras corridas, indecifráveis. O homem de capa preta aproximou-se e sentou-se em um banco vazio logo à frente de Bianca, mas não dirigiu a palavra a ninguém e nem pareceu importa-se com as mulheres logo às suas costas. Porém, o exato oposto dessa distância e falta de reação do homem acontecia com a louca Katarina. A mulher vestida de noiva colocou uma das mãos na boca e iniciou um balbuciar frenético de palavras sem sentido, como em uma reza desesperada. Bianca sentiu-se incomodada com todo aquele cochicho individual e encarou a mulher ao seu lado. Katarina tinha os olhos arregalados, encharcados por grossas lágrimas que caiam conforme ela piscava, e sua atenção estava toda voltada a um homem de capa preta que sentara-se a frente delas. Bianca voltou os olhos ao estranho de preto e franziu o cenho. Por que a noiva maluca parecia mostrar tanto medo dele ? Fazendo essa pergunta mentalmente, pôde ouvir Katarina dizer em voz baixa:
- Esse homem deve possuir o diabo na alma... ele é um demônio... demônio ! Como pôde ter sobrevivido... ? Não pode ser... não pode ser...
   Nas últimas palavras ditas pela noiva, Bianca virou-se para ela, prestes a perguntar o que havia de errado, mas antes de dizer qualquer coisa, foi surpreendida com a noiva levantando-se de súbito e apontando para o homem de capa preta. Katarina tinha os olhos para fora das órbitas e suava frio. Então, começou um berreiro frenético:
- DEMÔNIO ! VOCÊ É UM DEMÔNIO ! ME DEIXE EM PAZ, FILHO DO DIABO ! ME DEIXE EM PAZ ! EM PAZ !
   Bianca levou um susto e sentiu o coração bater com força no peito. Katarina gritava, clamando que um certo demônio a deixasse em paz, mas parecia que ela própria estava com o diabo no corpo. Encarou a face vermelha e suada da mulher aos berros e pôde sentir o medo invadir seu coração, como se o desespero dela fosse capaz de ser transmitido pelo ar, feito uma gripe. Os pêlos do corpo arrepiaram-se e Bianca encolheu-se no banco, completamente imóvel e receosa.
   O motorista parou o ônibus e os passageiros deram um jeito de segurar a noiva maluca. Arrastaram-na para fora e a largaram, jogada e sozinha, em frente a um cemitério. O transporte voltou a andar e todos respiraram aliviados, livres dos gritos infernais da mulher endiabrada. Bianca acompanhou com os olhos Katarina no chão, chorando e tentando levantar-se, até que o ônibus se afastasse o suficiente para perder de vista a noiva. Bufou, sentindo também um alívio encher o peito, porém, logo em seguida, um remorso inexplicável invadiu sua mente. A pobre mulher parecia estar precisando de ajuda e jogá-la pra fora de um veículo não era uma ajuda muito boa.

   Voltou o rosto para a janela. Algumas gotas finas e inconstantes começaram a bater no vidro, fazendo um leve barulho de chuva. Podia ver-se refletida e respirou fundo, lamentando o fato de que o cansaço estava começando a se tornar evidente, até mesmo em seu físico. O rosto parecia sem cor, enquanto os olhos castanhos claros haviam perdido o brilho que tinham na infância. Pôde sentir uma tristeza silenciosa invadir sua alma e abaixou a cabeça, pensando nas coisas boas que existiam em sua vida para compensar o esforço que fazia todos os dias ao sair do emprego difícil e ir estudar longe de casa. Ficou com o olhar perdido quando levantou mais uma vez o rosto e continuou a admirar o lado de fora, passando veloz e deixando riscos de cores no ar. Estranhamente, tinha a sensação de estar sendo observada. Olhou para o lado, virando o pescoço devagar, para não chamar a atenção de qualquer pessoa, entretanto, ninguém em seu campo de visão a estava observando. Levantou as sobrancelhas e passou a admirar mais uma vez a cidade que corria. Sentiu mais uma vez. Estava sendo observada, não havia dúvidas. Tentou enxergar as pessoas pelo reflexo que o vidro fazia, procurando pelo ser que lhe provocava aquela sensação tão desconfortável. Então, seus olhos caíram sobre o vulto escuro do homem à sua frente. Sua cabeça estava voltada pra a janela, podendo, muito bem, estar olhando para Bianca pelo reflexo, porém seu rosto não estava à mostra, o que fez com que Bianca não pudesse saber se ele a encarava ou não. A capa preta possuía um colarinho alto, em pé, que escondia a face do estranho, junto com seu chapéu caído. Bianca não teve a certeza de nada, não podendo julgar o estranho de preto como sendo o dono daquela sensação ou não, mas sentiu, mais uma vez, o medo enraizar no coração. As palavras de Katarina vieram ao seu ouvido... "Esse homem deve possuir o diabo na alma... ele é um demônio... demônio ! Como pôde ter sobrevivido... ? ". Sobrevivido ? Sobrevivido à que ? Sentindo um frio na espinha, Bianca começou a respirar com velocidade, pensando nas piores hipóteses. Desviou a atenção, por que encarar aquele homem com uma estranha capa preta lhe dava mais medo, como se sua energia fosse negativa e infectasse os olhos daqueles que o observavam. Bianca tentou se acalmar e encheu a cabeça com pensamentos bobos e engraçados, coisas felizes que pudessem afastar toda aquela aura ruim ao seu redor. Respirou fundo e deixou de lado o homem à sua frente.

   O ponto final logo se aproximava e Bianca poderia descer do ônibus. Para sua infelicidade, as únicas pessoas que se encontravam no transporte junto dela eram o motorista, o cobrador e o homem de capa preta. Levantou-se, segurando-se nos ferros dos bancos para que não caísse conforme o ônibus freava e entrava na garagem da estação. A porta se abriu e Bianca desceu as escadas com pressa, lançando um último olhar, rápido e receoso, para o estranho de roupa preta, e sentiu-se feliz em ver que ele ainda estava sentado, nem se importando se ela ia embora. Abriu um sorriso, andando velozmente, segurando o material com força e não cessando o passo por causa da garoa fina e irritante que descia do céu.. Logo estaria em casa, em sua cama quentinha e comendo alguma coisa cheia de química, porém muito saborosa.
   Bianca levantou a cabeça e admirou mais uma vez o firmamento acima. Por algum motivo, as estrelas já não brilhavam mais com tanta força, como se estivessem apagadas, envoltas por tristeza, envoltas por lamúria. Sentiu um frio súbito lhe atingir o corpo e, logo em seguida, foi ferida por um vento forte e furioso. Bianca colocou um dos braços em frente aos olhos, sentindo os pingos de chuva fina atingirem sua pele delicada. Os pêlos do corpo arrepiaram-se e Bianca teve que parar de andar para tentar se firmar no chão e não perder o equilíbrio com a ventania impiedosa. Entretanto, tão rápido e inesperado quanto vieram, o vento e o frio se foram. Bianca apertou o passo mais uma vez. Não queria ficar no meio da noite escura sozinha. Por mais belo e encantador que pudesse ser o período noturno, ele também era perigoso e cheio de maus elementos.
   No meio do caminho, sentiu incômodo mais uma vez. O mesmo incômodo que sentira no ônibus. Alguém a observava, podia sentir. O medo que crescia em seu peito fincou garras em sua carne, transformando o receio em desespero. O coração bateu loucamente, enquanto Bianca decidia-se o que fazer. Olhou para trás com pressa e deixou que uma lágrima escorresse pela bochecha ao ver, de longe, o mesmo homem de capa preta e chapéu caído. Seguia-a em passos apressados, com as mãos no bolso, demonstrando muita calma, mesmo andando com velocidade. Bianca começou a correr, apertando o material contra o corpo com força. A garoa a feria com mais intensidade conforme Bianca continuava a fugir. Mais lágrimas foram caindo, fundindo-se com a água da chuva que banhava o rosto de Bianca. Correria sem parar. Iria para algum lugar movimentado para que pudesse pedir a ajuda de alguém.
   Infelizmente, não conhecia o caminho para o centro e, no percurso sem referência, acabou se perdendo. Bianca olhava de relance para trás e, na maioria das vezes, não podia ver o homem que a seguia. Porém, vez ou outra, o encontrava às suas costas, distante, apenas andando com pressa, sem correr ou apertar o passo. Seus soluços invadiam a noite vazia que substituíra a garoa irritante por uma chuva torrencial, uma chuva que varria as impurezas e lavava a alma da lua.
   Ainda correndo, Bianca virou para uma rua escura. Não cessou o passo, até que se viu obrigada a parar, percebendo que, com a falta de luz, não enxergara que aquela rua era, para seu desespero, sem saída. Viu-se em um túnel sem volta, sem meios de escapada. Virou para a parte da rua que se abria para a cidade e sentiu o corpo congelar ao ver o homem de capa preta, parado a alguns metros à sua frente. Mais lágrimas desceram de seus olhos, enquanto Bianca levantou o rosto e encarou as estrelas. Elas já não possuíam brilho nenhum e estavam mortas, como se a infelicidade tivesse consumido sua energia. Bianca sentiu o coração chorar, pois ele sabia que as estrelas choravam por ele e ele chorava por elas. O homem de preto deus alguns passos em direção à Bianca. Seu rosto ainda estava coberto e, mesmo se estivesse à mostra, não seria visível, pois seria oculto pelo negro da noite. Encarando-o, Bianca engoliu em seco, fechando os olhos e chorando compulsivamente. Podia sentir o homem aproximar-se. Podia sentir os berros do coração. Podia sentir o corpo tremer. Agradeceu por tudo de bom que havia lhe acontecido na vida... agradeceu pelas chances que tivera e pediu perdão por seus pecados... Tinha a certeza que seria o fim... o fim...
   No meio da noite, no meio do barulho intenso da chuva, a lua ouviu um grito agudo... um grito de dor, de medo. Gradativamente, o satélite natural foi perdendo o brilho, a vida... como se tudo que lhe fosse bom tivesse morrido com o grito que uivava na noite. E o céu escuro tornou-se apenas trevas, por que nem mesmo as estrelas e a lua quiseram iluminar aquele momento de infelicidade... o momento em que um berro de desespero ecoou pedindo ajuda, não obtendo respostas e sofrendo em meio à solidão...

 

Ayla Pupo