O Cravista

 
   Em um vilarejo afastado da cidade, com muito verde e casas antigas, separadas apenas por uma cerca de arame enferrujado, a história de um homem era incerta, conhecido por sua enorme criação de cravos, por não sair de sua antiga casa e, por ninguém saber seu nome, foi apelidado de “Cravista”.
   Diziam que era uma enorme casa, com uma estufa nos fundos que possuía a maior criação de cravos que alguém poderia imaginar, mas com o tempo ela deixou de ser cuidada e envelheceu. Hoje vê-se vidros quebrados, telhas caídas e muita poeira nas janelas. Ninguém tinha coragem o suficiente para averiguar o que aconteceu, ninguém sabia se ele estava morto, se tinha mudado ou qualquer outra coisa.
   Na casa ao lado, uma família prosperava e crescia. Com a chegada de Henrique, a família se unia cada vez mais, os anos se passavam rápido e ele e seu irmão mais velho jogavam bola todos os dias no quintal ao lado da casa. Uma bola colorida fazia a diversão deles por horas, ainda sem noção da força que tinha, Henrique chutou a bola para longe, ultrapassando a cerca e indo para a casa do vizinho.
   Logicamente, já que foi ele que chutou, ele que foi buscar a bola, sozinho. Ele foi até o portão de entrada e o abriu cuidadosamente para não ser notado, andando silenciosamente sobre o gramado e com um medo no coração. Deu a volta para chegar aos fundos, aparentemente onde a bola havia caído.
   Viu uma enorme construção de vidro, bem suja e descuidada, parecia ter sido abandonada pelo tempo. Avistou a bola, estava encostada perto de um vidro quebrado, ele se aproximou, pegou a bola, curiosamente deu uma espiada dentro daquela estufa e viu centenas de vasos cheios de terras e plantas mortas. Resolveu entrar só para dar uma olhadinha a mais e passou pelo vidro quebrado, com a bola na mão.
   Andando silenciosamente e olhando tudo com muita curiosidade, pensou que a casa poderia estar abandonada, pois tudo estava muito sujo. Deixou sua bola encostada ao lado de uma mesa e continuou andando pelo local. Pétalas negras e secas estavam por quase todos os lugares, em todos os vasos e até cobriam uma parte de chão. Uma porta no fim da estufa dava de entrada para a casa, esta estava fechada.
   Henrique continuou explorando sem se importar muito com o tempo, avistou um livro empoeirado em cima de um balcão e pegou para olhar. Gráficos, estatísticas, cálculos e anotações em todas as páginas, algumas fórmulas químicas e outros símbolos que ele não fazia ideia do que significavam, virando as páginas cuidadosamente para não rasgar nenhuma folha, então viu uma foto colocada em uma das páginas, ele olhou direito e a foto era daquela mesma estufa repleta de cravos brancos e vermelhos, parecia uma foto bem antiga, julgando pelo estado da estufa no presente, mas ele se encantou com aquela imagem.
   Resolveu pegar o livro para ler com mais calma em casa, se virou e viu a porta que dava para a casa aberta e um gelo subiu pela barriga, depois olhou para o lado e um velho baixinho, de óculos enormes, uma boina marrom e paletó xadrez em vermelho e branco segurava a bola e a analisava com seus olhos. O velhinho olhou para o garoto, que o encarava e tremia com o livro na mão, sorriu e disse:
   - É uma bela bola jovenzinho, veio busca-la?
   Henrique engoliu em seco antes de responder:
   - Sim, mas eu já estava de saída, eu nem toquei em nada viu, juro pela minha mãe mortinha...
   Ele ajusta seus óculos e responde:
- Então é muito interessante como o meu livro de anotações foi parar milagrosamente em suas mãos...
   Ele devolve o livro na bancada e afirma:
   - Eu nem abri, juro!
   O velho sorri, se aproxima lhe entregando a bola e diz:
   - Menino cara de pau, cuidado com suas promessas, é a vida da sua mãe que está em jogo... Sou velho, mas não sou cego e nem surdo. Pode levar este livro se quiser, ele não serve mais pra mim.
   O menino percebe que o velho não é mal-humorado e não fica mais tão assustado, ele pega o livro, segura a bola coma outra mão e vai em direção ao mesmo lugar por onde entrou e o velho interrompe:
   - Por ai não, vai se cortar inteiro! Venha, eu te levo até a porta da frente.
   Henrique segue o velho, que anda lentamente, eles entram na casa e passam pela cozinha, depois pela sala de jantar e enfim pela sala de visitas, onde fica a porta de entrada, tudo muito bem limpinho e organizado. Antes de sair, ele vê um cravo azul dentro de uma espécie de jaula de vidro na mesa da sala de visitas. Ele fica hipnotizado e não consegue disfarçar a fascinação. O velhinho percebe e logo pergunta:
   - Bonito não é? Quer saber a história dele?
   Fazendo um sinal de “sim” com a cabeça, o velho o convida para sentar no sofá enquanto ele se senta na poltrona ao lado do cravo e começa:
   - Há muito tempo atrás eu era um criador de cravos, biólogo, plantava cravos brancos e vermelhos, separando todos pela coloração, número de pétalas, altura, forma, tudo isso em busca da perfeição. Separava os genes, fazia os cruzamentos das melhores com as melhores.  Tudo em busca do branco mais branco e do vermelho mais vermelho.
   Henrique abre o livro rapidamente na página da foto que tinha visto e a mostra para ele:
   - É esta a época?
   - Sim, esta mesmo, minha época de ouro. Aperfeiçoei todas as técnicas de cultivo, conseguia cravos com flores que duravam quase cinco anos, outros com dois metros de altura e alguns com cinquenta pétalas. Consegui um branco tão puro que parecia radiar luz e um vermelho que parecia estar encoberta de sangue. Mas em um dos experimentos nasceu este cravo azul, só ele, único e pleno. Ele não cresceu muito e não tinha muitas pétalas, no início eu fiquei muito bravo, achava uma aberração, uma impossibilidade. Este cravo foi contra todos os meus estudos, contra todos os gráficos e até contra a biologia. Geneticamente falando ele é uma mutação, um monstro. Mas por mais que ele fosse incoerente, seduziu meu coração e meus olhos. A busca da perfeição foi terminada.
   - E desde então você parou seus estudos?
   - Sim, na verdade não foi por querer, eu simplesmente não conseguia me afastar dele, pouco a pouco eu comecei a viver só para mantê-lo vivo, o maior tempo que eu conseguir e estou assim até hoje. Faz doze anos que cuido dele como se fosse minha vida.
   - Minha mãe falou que você tinha morrido...
   O velhinho solta uma boa risada e responde:
   - Eu até compreendo, mas felizmente eu não morri, com este cravo eu aprendi o que é a perfeição, aprendi que ela não está no absoluto, não está no extremo, está no simples, está naquilo que é suave, naquilo por que se apaixona, naquilo que realiza nossos sonhos, a perfeição é singular e única, porém mutável pela visão de cada indivíduo. Sou uma das únicas pessoas que tiveram o sonho realizado na vida. Talvez esteja na hora de compartilhar isto com mais alguém. Não quer ele para você?
   - Mas eu já estou levando coisa demais...
   - Hora... Leve sua bola e o livro e depois volte para pegar o cravo.
   Naquela noite Henrique dormiu com o cravo azul em cima da mesa de seu quarto perto do livro aberto nas primeiras páginas, onde se ensinava como começar a plantar cravos e como cuidá-los. Naquela noite a primeira pétala daquele cravo especial caiu, anunciando sua morte, como a do Cravista naquela mesma noite.