Leão da Alma
   Acima das nuvens, um homem com cerca de trinta e dois anos se prepara para saltar de paraquedas, com as nuvens tampando a sua visão sobre o que estava sobrevoando, resolveu entregar sua vida a sorte e saltou em uma queda livre e ariscada. O avião segue seu rumo e logo desaparece de vista.
   Antes de penetrar nas nuvens, ele já abre o paraquedas para apreciar a fantástica vista. O Sol parecia maior lá de cima e sua luz refletida nas nuvens as faziam parecer um chão dourado e volumoso. Um azul claro que escurecia a medida que se olhasse para cima dava a impressão dele estar no teto do mundo, entre a Terra e o Universo.
   Despedindo-se daquela maravilhosa vista e enfim penetrando nas nuvens, de onde nada se via a não ser um branco diluído em cinza claro e uma loucura de formatos. Com ventos mais arredios, ficara mais difícil de controlar o voo, chegando até em perder o controle da queda. Até que foi surpreendido por, no meio de todo aquele branco, ver que algo se aproximava vindo de baixo, não poderia ser o chão, pois ainda estava em uma altitude alta.
   Chegando cada vez mais perto, a névoa parecia-se desfazer e melhorar a visão, mais um pouco e ele percebeu o formato de árvores, então se deparou com uma floresta e teve que se preparar para o pouso forçado ali mesmo, entre as árvores que surgiam no meio das nuvens. Caindo entre galhos que lhe cortavam a pele o seu paraquedas, chegou até o chão machucado enquanto seu paraquedas ficara preso em um emaranhado de galhos acima dele.
   Mesmo em terra a névoa era muito grande e continuava dificultando uma visão mais longínqua. Suspirou fundo ao mesmo tempo em que olhava para a floresta ao seu redor. Não sabia onde estava e nem qual caminho tomar depois dali. Começou a andar, mesmo sem rumo e deixando o seu equipamento para trás. Devagar e com calma, pisando duas vezes no mesmo local para evitar surpresas.
   Viu o que parecia ser o fim da floresta e foi em sua direção na esperança de conseguir se localizar melhor. Ele estava certo, era realmente o fim da floresta, mas também era o começo do que parecia ser um penhasco. Ele se ajoelhou alguns metros antes, deitou de barriga para baixo e foi se rastejando até a beira. Olhava curioso na esperança de enxergar algo, forçou a vista muitas vezes, mas não obteve sucesso.
   Decepcionado, se levantou e virou para trás, andou dois passos e notou que as rochas onde pisava possuíam um formato peculiar. Como se tivessem sido trabalhadas e esculpidas, olhou direito e percebeu que haviam dois olhos e um par de orelhas felinas, linhas onduladas e desgovernadas davam a impressão de uma juba e então percebeu que estava em cima de uma enorme escultura de uma cabeça de um leão. Voltou para a beira do penhasco e viu que a estátua continuava mais embaixo, com o fusinho e depois dentes enormes, era um leão rugindo.
   Resolveu descer até a mandíbula dele, pois estava impressionado e intrigado com a magnitude daquele trabalho. Devagar e com muito cuidado, foi escalando pelo relevo que formava a juba do leão, até chegar à outra parte da floresta. Caminhou junto da formação rochosa até chegar dentro da mandíbula. Da garganta, uma enorme caverna que parecia ser muito profunda e escura, impedindo de ver o final. 
   Com a curiosidade enchendo sua cabeça de perguntas sobre o que poder existir dentro daquela caverna, seu corpo foi levemente se aproximando na caverna e andando em direção aquela negritude toda. Entrando dentro da garganta do leão, indo cada vez mais para o fundo, a luz da entrada parecia diminuir cada vez mais, o chão parecia firme e um pouco ondulado apenas.
   Mesmo que não conseguiria enxergar nada, continuava firme em sua decisão, era mais que a sua vontade, algo parecia lhe atrair ali dentro, algo que ele não fazia ideia, mas atraia. Aos poucos deu a impressão de haver luz bem no fundo daquela caverna, ele forçava a vista cerrando os olhos e começou a caminhar rapidamente em sua direção, de uma dúvida apareceu uma certeza e ele já vira um ponto de uma luz azulada que dava a impressão de estar bem distante.
   Sem se preocupar com os passos apressados, caiu no que parecia ser um rio dentro da caverna, uma água negra, com um leve aroma de lírio e doce. Desorientado pelo susto e sem saber direito em que direção ir, buscou a beira para se apoiar e retomar o folego, ali ele descansou um pouco e voltou a olhar para a luz que buscara, lentamente ela começou a se aproximar e parecia até vir flutuando sobre a aquele lago. Chegando cada vez mais perto, ele percebera que ela vinha debaixo do que parecia ser um pano quase transparente.
   Uma mão desconhecida o pegou pelo braço direito e o puxou para fora da água. Tentava compreender aquilo que estava acontecendo sem muito sucesso, estava meio desorientado e incrédulo. Esta mesma mão retirou o tecido de cima daquela luz e esta brilhou intensamente, chegando até a cegar o rapaz por alguns instantes. Revelando estalactites pontudas vindas do teto, um chão avermelhado e com pequenos brilhos, o lago que era extenso e uma ponte que o atravessava até o outro lado, a luz vinha de um lampião de vidro e quem o segurava era um senhor coberto por um manto lilás e com um sorriso na cara.
   O velhote o ajuda a levantar, o cumprimenta com um aperto de mão e diz:
   - Foi um banho e tanto. Não olha antes de pisar não?
   Olhando de canto de olho para o velho, que parecia ser simpático, com um certo estranhamento por toda a situação e enfim respondeu:
   - Eu não conseguia nem ver um palmo na frente, como saberia que tem um lago dentro da caverna?
   - É... Você precisa parar de caminhar sem enxergar para onde está indo.
   - Mas é a primeira vez que fiz isso!
   - Ah é? Então o que foi pular de paraquedas sem enxergar o chão?
   - Não é a mesma coisa? Aliás, como você sabe? Quem é você?
   - É sim a mesma coisa, só você ainda não enxergou. Enxergar... está ai algo que você precisa  melhor na sua vida...
   - Como você sabe da minha vida?!
   - Sei simplesmente porque enxergo.
   O velhote retira o manto e ergue o lampião na frente do rapaz, ficando surpreso ao ver que a fonte de luz parecia vir de um globo-ocular, que brilhava fortemente e expandia sua luz azul pelo espaço. Porém não havia expressão contida naquele olhar, parecia ser vazio e sem emoção. Intrigado e hipnotizado por aquele olho, o rapaz pergunta sem desgrudar seu olhar daquele lampião:
   - O que é isto?
   - Isto é a sua alma...
   Continuando hipnotizado, parecia que se relacionava de alguma maneira com aquela luz, não fez mais perguntas e nem precisou de respostas. Apenas continuava olhando fixamente, como se não houvesse mais nada no mundo. Em seu mais profundo interior, o rapaz se via conversando com a própria alma, descobrindo os segredos que nem ele mesmo sabia que tinha e percebendo desejos que nunca tivera antes. O velho começa lentamente a mover o lampião e o rapaz o segue com a cabeça como se fosse um cão seguindo um biscoito na mão do dono. Ele caminha em direção à saída e o rapaz o segue, sem prestar atenção em mais nada. Chegando à boca do leão, ele coloca o mando em cima do lampião e o rapaz parece acordar de um longo sono.
   Piscando com certa força, tentando fazer com que a visão voltasse ao normal e saísse do que parecia ser um sonho, avistou por fim a paisagem que se formava diante de si, o sol a sua frente e acima das nuvens, estas formando um chão dourado, exatamente igual de quando pulava de paraquedas, era a mesma vista. O velhote completou o pensamento que o rapaz teve naquele exato momento:
   - Queria que durasse mais? Pois agora pode apreciar a vista o tempo que quiser.
   Ele se retira para dentro da caverna e em poucos minutos some com seu misterioso lampião. Em uma pose fixa, parecendo estátua, o rapaz olha admirando aquela bela paisagem e deixa algumas horas se perderem daqueles instantes. Depois, confiante na vida e com olhar inspirador, se aproxima dos dentes, passa por eles e se joga da ilha em direção as nuvens, jogando novamente sua sorte ao vento.
   Com um vento forte batendo em todo o seu corpo e nada para proteger seus olhos, ele os fecha até a hora de cair por completo. Sem enxergar, não vê o destino que seu corpo encontra em seu destino, um maravilhoso mar, azul e calmo. A pancada é forte e dolorosa, porém ele sobrevive a queda e ainda consegue nadar até a costa que tinha ali perto.
   O velho, por sua vez, continuaria naquela ilha para todo o sempre, escondido naquela caverna que eram as entranhas de uma gigante obra de arte. Cuidando de seu lampião que continha a alma em formato de olhar. Ele poderia ver a alma de todos, mas a sua permaneceria outro mistério...
 
Rafael Sunny

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