A Sensualidade da Morte

A Sensualidade da Morte

 

Nota da escritora: Esse é um texto original e a reprodução dele não deverá ser feita sem a minha autorização. Por favor, respeite meu trabalho.
 
 
A Sensualidade da Morte

 

A última lágrima escorria, conforme saia trêmula e forçada. Embora verdadeira, não brotava com naturalidade. Era preciso esforço para chorar através dos olhos, enquanto que chorar por dentro... era quase impossível evitar. O dia estava bonito: sem chuva, sem nuvens, sem frio... Um dia nada propício para um velório.
        Ágatha aproximou-se de Sofia e, percebendo que esta não chorava muito, indagou preocupada:
        _ O que houve, minha linda ? Por acaso, já chorou o bastante para que não existam mais lágrimas a serem derramadas nessa hora ?
        Não houve respostas; apenas o silêncio de Sofia, que sentia a última gota de choro forçado secando com o calor do sol.
        As pessoas murmuravam umas para as outras, como se falar alto fosse incomodar o defunto no caixão. Uns choravam, outros pareciam aflitos, alguns ainda não demonstravam emoção alguma. Sofia aproximou-se da caixa funerária e, encontrando um pouco de coragem, olhou para o cadáver.
        Lúcio encontrava-se branco como mármore. Os cabelos escuros e curtos estavam penteados e fixos com gel, e teriam ficado muito bonitos se seus olhos estivessem abertos – olhos azuis, claros como a água límpida de uma nascente virgem. Usava terno e sapatos finos, que não caiam-lhe bem, pois o rosto, ainda que pálido e morto, permanecia jovem e trazia em si traços de molecagem. Lúcio já era um homem, mas não gostava de responsabilidades e agia sempre como uma criança inconsequente... E aquelas roupas, feitas para pessoas sérias e amargas, não pertenciam ao Lúcio sorridente e safado que Sofia outrora conhecera.
        Afastou-se do defunto em passos lentos, andando de costas, conforme observava outras pessoas aproximando-se do caixão para uma última despedida. Apoiou-se em uma árvore que, embora coberta de flores rosadas, parecia sem vida e seca... talvez a lamúria e os prantos do cemitério tivessem a deixado com tal aspecto; ou, talvez, fosse apenas a visão distorcida de Sofia que, sofrendo, não enxergava alegria em nada que a rodeava.
   Tentou forçar mais um choro. Porém, nada de lágrimas, nada de soluços, nada de aperto nos olhos ou boca seca. O calor do dia fazia com que seu corpo suasse, tendo em vista o negrume e o peso de suas roupas de luto. Contudo, a tristeza no peito fazia com que suas pernas tremessem e, temendo não sustentar a si própria, Sofia escorregou pelo tronco da árvore e sentou-se à sombra de suas flores.
        Novamente, Ágatha aproximou-se e, fazendo menção de abaixar-se ao lado de Sofia, recebeu um olhar da amiga que pedia por solidão. Entendendo de imediato, afastou-se, indo conversar com os familiares do morto.
        O dia caminhava devagar... sob a árvore, Sofia observou as pessoas que iam e vinham. A maioria não se demorava: aparecia por poucos minutos, chorava uma ou duas gotas, dizia palavras de consolo e ia... para longe, para onde Lúcio jamais estaria de novo.
        Logo, ninguém mais restara, apenas Ágatha, melhor amiga de Lúcio, e sua família que, embora triste, parecia demonstrar uma espécie de alívio. O dia já se punha... o sol já perdia seu brilho, escondendo-se atrás de nuvens grossas. E, sozinha na grama, Sofia ainda observava o caixão.
        _ Minha querida... temos de levar o corpo para o necrotério. – de repente, Sofia ouviu alguém dizer, e, olhando para o lado, encontrou os olhos aflitos da mãe de Lúcio – O enterro será amanhã de manhã. Volte para casa, durma um pouco e não pense nas angústias deste infortúnio.
        Sofia voltou a encarar a caixa funerária. Já era hora de partir ? Não queria... não sentia disposição para voltar para casa... não queria, nem ao menos sabia se conseguiria. Seu desejo era permanecer sentada onde estava, observando o leito de seu amado ao  longe, esperando pelo momento em que ele levantaria para levá-la consigo. Mas, embora abalada, Sofia ainda tinha consciência do que era realidade e do que não era... e Lúcio jamais voltaria a se erguer.
        Levantou-se. Henrique, irmão de Lúcio, ofereceu-lhe ajuda, porém, recusando-a, Sofia apoiou-se no tronco da árvore e pôs-se de pé. Não desgrudava os olhos do caixão. Tinha medo de que, se perdesse um único segundo dos últimos momentos de Lúcio à luz do sol, acabaria por ficar louca.
        Mais uma vez, Ágatha aproximou-se, e, pegando na mão da amiga, perguntou-lhe em voz baixa:
        _ Deseja uma carona até sua casa ? Posso levá-la e, caso almeje, posso passar a noite em sua companhia para que a angústia não a atormente enquanto está só e vulnerável à nostalgia.
        Alguns segundos se passaram, até que Sofia, encontrando coragem para desgrudar a visão da caixa funerária, encarou Ágatha de maneira melancólica. A amiga, ruiva e de cabelos cheios, parecia extremamente aflita, e as olheiras, adquiridas depois de muito choro, davam-lhe um aspecto cadavérico, tendo em vista a magreza já acentuada de Ágatha. Imaginou se não estaria no mesmo estado... Desejou por um momento estar em casa, tomando um banho quente e lavando a alma de qualquer pensamento infeliz. Contudo, logo a lembrança de Lúcio veio-lhe à mente, e, decidindo que não queria afastar-se do cadáver do amado, respondeu à pergunta da amiga:
        _ Agradeço-lhe imensamente. Mas ainda desejo alguns minutos com Lúcio.
        Logo, o restante da família do defunto aproximou-se da árvore em que Ágatha, Sofia, Henrique e a mãe se encontravam. E, ganhando a frente novamente, a mãe de Lúcio disse:
        _ Ora, vamos, minha linda... Já vão levar o corpo para o necrotério. Não pode ficar.
        Sofia emudeceu. Tinha de encontrar uma maneira de permanecer ao lado do defunto por um pouco mais de tempo. Queria ficar a sós com o amado. Desejava um momento em que o tivesse apenas para si, para que apenas ela pudesse encarar-lhe o rosto bonito com amor e admiração. Então, encontrando coragem, soltou uma pergunta ousada:
        _ Não posso ficar no necrotério com ele ? Apenas por um tempo.
        A mãe de Lúcio encarou Henrique e, logo em seguida, Ágatha. O trio mantinha uma expressão de reprovação no rosto, como se tivesse a certeza de que um momento final com Lúcio não faria bem à Sofia. Mas, quando a senhora encarou novamente a nora, deparou-se com olhos desesperados e uma súplica que não saia em palavras. Suspirou e, baixando os olhos, respondeu:
        _ Sim, minha querida, pode ficar.
        Henrique e Ágatha olharam-na perplexos, mal disfarçando que eram completamente contra aquela ideia. Mas a mãe do falecido pareceu não se importar e continuou:
        _ Deixe-me tratar com Senhor Bernardes porque é ele o responsável pelo necrotério. Por favor, deem-me licença. – e afastou-se em passos lentos.
        Por um minuto ou mais, Sofia ficou a encarar o longe, observando os familiares dispersarem-se e afastarem-se de onde ela estava. Todos, embora ainda tristes, pareciam não expressar mais o abalo inicial que a notícia trouxera. E, franzindo o cenho, Sofia indignou-se com toda aquela indiferença. Contudo, logo veio à sua mente que ninguém jamais conhecera Lúcio como ela conhecera; ninguém teria visto a doçura que ele carregava escondida nos olhos sapecas; ninguém saberia que, por trás das irresponsabilidades, existia um homem que, acima de tudo, amava viver. Por isso, ninguém sentiria a falta dele da maneira como ela sentiria. Porque eles conheceram a peste, e ela conhecera o anjo.
        Ágatha deu-lhe um beijo nas bochechas murchas e afastou-se dizendo alguma coisa. Henrique deu-lhe um tapinha de consolo nos ombros, mas permaneceu calado. E, logo, Sofia estava sozinha. O sol ainda estava quente... e seus olhos, secos. Contudo, quase não havia mais a iluminação majestosa do Astro Rei, porque as trevas já começavam a cobrir o lugar.
        _ Você poderá ficar no necrotério por meia hora, Sofia. – disse, de repente, a mãe de Lúcio, que, aproximando-se devagar, passou despercebida por Sofia. – Agora, por favor, prometa-me que depois irá para casa e descansará. Está tão abatida, minha querida...
        E foi-se também. Ainda parada sob a árvore, observou alguns homens aproximarem-se do caixão. Fecharam-no e levaram Lúcio para dentro de um pequeno prédio de dois andares. Logo, um senhor negro de bigodes brancos aproximou-se de Sofia.
        _ A Madame disse-me que você deseja ficar um momento a sós com o falecido. Siga-me que lhe darei as instruções.
        E Sofia seguiu com ele para dentro do prédio, conforme a noite já dominava o céu e as estrelas brilhavam intensas.
        A sala era clara... os azulejos brancos chegavam até a cegar os olhos de alguém que entrasse distraído. Luzes brancas brotavam de todos os lados no aposento quadrado, forrado de gavetas enormes e maciças onde, Sofia sabia, encontravam-se os corpos daqueles que já se partiram. O negro velho já se fora, fechando a porta e abandonando a pobre mulher no frio mórbido que o lugar possuía; porém, nada disso incomodava, pois Sofia não estava só: o cadáver de seu amado encontrava-se logo à frente, fora do caixão, deitado angelicalmente sobre uma maca de alumínio.
        Sofia aproximou-se e, olhando para baixo, encarou os traços de Lúcio. Sem que pudesse conter, uma lágrima escorreu de seus olhos, caindo certeiramente sobre as bochechas do defunto. A queda ecoou pela sala... ou ao menos foi o que a mente perturbada de Sofia pensou. E, logo, um choro incontido surgiu, molhando a face de ambos.
        Pegou-lhe a mão fria, dura pela rigidez cadavérica, e, antes que pudesse pensar no que fazia, atirava-se no corpo de Lúcio, abraçando-o em desespero. Suas unhas, compridas e afiadas, enterravam-se sem dó sobre o pano do terno, e a boca, contorcida pela dor, beijava-lhe a fronte como se o amado pudesse sentir.
        Conforme tocava a pele morta de Lúcio, lembrou-se de como esta era quente em uma outra época: lembrou-se do momento em que se conheceram, do primeiro beijo ardente que ele lhe dera sem saber se lhe era permitido... pensou nas vezes em que se abraçaram inocentemente no sofá de sua casa quando o frio era intenso, de como ele lhe contava histórias de terror para vê-la se contorcer de medo; recordou-se de quando tocaram-se intimamente, com o ardor fluindo através de seus corpos... lembrou-se dos olhos azuis de Lúcio, que encaravam-na cheios de um desejo juvenil. E chorou... Sofia derramou água pelos olhos de tal forma que já não mais podia enxergar. Abraçou ainda mais o cadáver, anuviando-se em imagens do passado, relembrando as sensações que tivera, sentindo o calor subir-lhe através das veias. E, atormentada pelas recordações, jurou sentir o rosto do defunto esquentar-se e, com os olhos ainda embaçados pelo choro, teve a certeza de ver sua pele corar.
        Não havia mais nada na sala... Sofia esquecera-se do branco gelado, das luzes cegantes, das gavetas que continham podridão... Ela nada via, nada sentia. Apenas lembrava. Não percebeu o frio que penetrava seu corpo nu, assim como não tinha mais a percepção de que Lúcio ainda era gélido. Para Sofia, o lugar não existia; o mundo era composto unicamente pelo contato de sua nudez com a nudez do defunto... os movimentos que ela fazia não tinham sentido, pois absolutamente nada penetrava-lhe o íntimo, ainda que ela sentisse... ainda que ela jurasse ter calor pulsante no meio das pernas.
        E sentia os toques... Ah ! Os toques, das mãos fortes de seu amado, que, em mente, acariciavam-lhe o corpo, as pernas, e limpavam as lágrimas de seus olhos, ainda que de fato não se movessem. A respiração tornava-se mais alta. A sensação inebriante tirava-lhe o fôlego, e, junto com o frio da sala, fazia com que o vapor saísse de sua garganta. E não parava de chorar. O lubrificante era a água que desprendia-se de sua bochecha e caia certeira no corpo despido e duro, que mostrava rigidez por estar morto, e não fervente de amor. Os soluços mostravam-se altos e descontrolados, e aumentavam de acordo com o ritmo em que Sofia cavalgava sobre o cadáver.
        E, enfim, a explosão. Que não veio antes nem depois da dele... surgiu sozinha, sem que pudesse juntar-se ao líquido de seu querido que, outrora, havia sido derramado em seu íntimo. E, forte, a sensação revelou-se enlouquecedora... embora esclarecedora também. Pois, logo após os segundos de puro êxtase, Sofia desanuviou os olhos e pareceu ir voltando à razão.
        Os cabelos arrumados de Lúcio tornaram-se bagunçados... as roupas bonitas estavam atiradas ao chão ou rasgadas e semi penduradas no corpo gelado. E, encima de um recém-falecido, Sofia estacou, trêmula, encarando o rosto manchado de choro daquele que já não estava vivo. Assim, contorcendo sua face de puro terror, percebeu que sua sanidade havia se esgotado por completo.
        Deitando-se no travesseiro fofo, Sofia encarou o teto de seu quarto obscuro. Por algum motivo, sentia-se feliz. Sabia, lá no fundo, que tudo estava bem, que tudo havia de melhorar. Saíra de fininho do necrotério e, chegando em casa, não atendeu ao telefone ou à campainha, permanecendo quieta e tranquila. Havia tomado um banho relaxante e demorado... Não estava com pressa, ainda que ela sentisse uma ansiedade crescente invadir-lhe o peito.
        A camisola de seda macia envolveu-a de modo carinhoso e, na cama, Sofia esperava pelo desfecho de sua história. Sentiria saudades, sim, ela sabia que não poderia evitar isso. Mas isso não importava, porque ela era louca e loucos convivem com coisas piores que a saudade. Respirou fundo, e logo tossiu. O cheiro do gás já começava a incomodar, embora Sofia nem cogitasse a possibilidade de ir até a cozinha desligá-lo.
        Estava satisfeita. Pouco a pouco, ia caindo em um sono profundo, em que o calor tomava-lhe por completo. Não estava mais naquela sala branca e fria e, mesmo que Lúcio não estivesse mais ao seu lado em corpo, certamente estava ali em espírito; e Sofia sentia-se segura com isso.
        Foi morrendo... Não esperaria até a manhã seguinte, não queria encarar mais uma vez o corpo de seu querido. Nada disso importava agora. Ela nunca estivera tão próxima de fundir-se a ele como estava naquele momento: logo, seriam ambos poeira cósmica e viajariam pelo universo sem preocupações. Não havia Deus, não havia vida; apenas os dois, que bastavam um ao outro.
        Os olhos foram fechando; o cheiro, matando. Assim, em seus últimos segundos de vida, Sofia relembrou dos risos de Lúcio, das corridas no parque, das brincadeiras de esconde-esconde... recordou dos detalhes de seu corpo, das palavras que ele lhe sussurrava de modo provocante. Pensou em como ele havia sido grande, em como ele se tornara tão instantaneamente o homem de sua vida. Morrendo, enfim, encontrou no escuro de sua mente as palavras perfeitas e, visualizando-as, partiu. Eu te amo, ela viu. E disse, ao morrer... Pois, embora tenha definhado, ainda tinha uma única certeza em seu último fio de luz: Sofia amava Lúcio mais do que amava a própria vida.
        E assim foi. Foi para onde Lúcio estava e partiu do lugar para onde ambos jamais voltariam.

 
Ayla Pupo