Coração Negro

Coração Negro

 

Nota da escritora: esse é um texto original e a reprodução dele não deve ser feita sem a minha autorização. Por favor, respeite meu trabalho.
 
Coração Negro

 

   Era noite, e o jantar estava sendo servido, como costumeiramente, no refeitório do Internato Padre Augusto de Castro. A luz tímida dos primeiros raios de luar entrava com delicadeza pelas altas janelas do aposento e todas as mesas já se encontravam cheias de alunos. No fundo do salão, havia a mesa dos professores e dos diretores da escola, que também já estava completa com todo o quadro docente ansioso para acabar com a fome.

   Sentada a uma das mesas mais próximas à mesa dos professores, encontrava-se Úrsula. O barulho do lugar abarrotado de gente enchia-lhe os ouvidos, porém nada podia escutar: tudo o que entrava por um lado saia pelo outro, sem que Úrsula pudesse prestar atenção ou processar corretamente as informações. Sua mente ocupada não dava atenção às circunstâncias ao seu redor, tendo como único foco uma mancha negra que se esgueirava entre as mesas dos alunos e ia sentar-se junto aos demais professores.
   Respirou profundamente, dando um suspiro sonoro, triste e amargo. Desviou o olhar da capa negra do professor, que esvoaçava conforme os movimentos que o homem fazia ao se sentar. Encarou a comida em seu prato, intocada, fria e sem sabor, e franziu o cenho com certo nojo. Fazia dias que Úrsula mal conseguia comer e, com o estômago embrulhado pela falta de comida, sentia-se enjoada e fraca. Dia após dia, ficava cada vez mais pálida, deixando sua pele alva com aspecto doentio.
   Voltou a encarar o homem que entrara. Professor Sebastian White talvez nem pudesse ser chamado assim: era mais um vulto que um homem, sempre coberto do pescoço aos pés com aquela vestimenta negra e sempre escondendo o rosto com os cabelos escuros e exageradamente lisos e mal cuidados, que não lhe caiam bem na altura dos ombros. Sentiu asco. Era como se visse a si mesma refletida na imagem obscura do professor: um vulto solitário, mal-humorado e silencioso. Exatamente como ela se tornara, embora nem sempre ela tivesse sido daquele jeito deplorável e digna de pena. Continuou a olhar para White... De fato, acreditava que os únicos elementos brancos naquele homem eram sua pele, seu nome, e seu colarinho, tão hipocritamente colocado em sua garganta... não conseguiu evitar uma careta cheia de ódio, enquanto o peito subia e descia com força, conforme Úrsula sentia dificuldade em fazer o ar entrar nos pulmões. Observava a mancha negra saboreando a comida da maneira como ela não fazia há dias... percebeu a frieza que emanava de seus poros e a calma com que mexia nos talheres e levava a comida à boca de forma elegante e formal. E Úrsula ardeu em ódio... O homem parecia não emitir qualquer espécie de culpa ou remorso... Ou não os sentia em absoluto ou sabia escondê-los de modo perfurante.
   Sem desviar a atenção do semblante repulsivo do professor, Úrsula apertou os olhos para segurar o choro. A dor e a vergonha, ainda que desconhecidas de todos, invadiam-lhe o peito. Um arrepio de retorcer a pele sacudiu seu corpo, e o coração doeu de tristeza. Pensava nisso quando, sentindo um sobressalto, assustou-se ao perceber que o vulto negro de White encarava-lhe profundamente. Sem sorrisos, sem piedade. O professor perfurava-a com os olhos cheios de aversão, embora estes transmitissem um desejo ofensivo. Úrsula, hipnotizada e temerosa, não conseguiu quebrar a ligação entre os olhares e, sentindo o coração quase saltar da boca, levantou-se depressa e saiu do refeitório, abandonando rapidamente a mesa dos alunos.
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   Nos aposentos, Úrsula afagou os cabelos negros. Após dias em depressão e solidão, não tivera ânimo para cuidar dos cachos que, outrora volumosos, agora caiam sem brilho sobre o rosto fino da garota. Os cabelos compridos estavam bagunçados, mortos, refletindo como a alma de Úrsula haveria de estar. Sentada em frente a uma janela, encarava o negro da noite que invadia os aposentos e afagava sua fronte. O negro da capa de White perseguia-a até mesmo em lugares em que deveria sentir-se em paz. Sem luz ao redor, era envolta por um negrume avassalador e atormentador, pois nem mesmo o brilho pudico da lua era capaz de clarear sua mente e seu corpo.

   Sozinha, não resistiu e perdeu as forças, caindo em um choro profundo, porém silencioso e envergonhado. Lembrou-se tristemente dos tempos em que caminhava com o rosto levantado pelos corredores da escola, sendo cumprimentada por alunos e professores. Brilhante, bonita, ousada... Úrsula havia perdido seus dias de glória, sua beleza se esvaíra, sua inteligência a abandonara, deixando-a incapaz de procurar por uma saída, e sua ousadia escondera-se por ter sido a principal culpada de seu estado miserável. Não passava agora de uma pobre infeliz sob as garras de um tirano que não tinha rosto, um vulto negro, uma aura obscura. Não conseguia entender como acontecera tudo aquilo; sua independência, força e opinião deveriam servir para espantar e intimidar homens rudes, frios e cheios de autoridade, e não para enfeitiçá-los. Caíra em sua própria armadilha, porque agora, mais do que nunca, submetia-se à ruína provocada por um mal que sempre tentara vencer: os homens.
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   Sebastian terminava seu jantar com certa calma e indiferença. A garota havia saído há pouco tempo do refeitório; parecia atormentada, indefesa... cheia de ódio. Contudo o professor sabia que, por mais que Úrsula se sentisse perturbada, tal sensação era infinitamente menor que a que ele mesmo sentia. Sebastian White terminou sua sopa, colocando de lado os talheres e percebendo um certo tremor invadir-lhe as mãos. Tratou de escondê-las, temeroso de que alguém tivesse percebido seu desequilíbrio. Embora transmitisse poder, firmeza e uma frieza rígida, o sacerdote e professor sentia seu interior desmoronar em dúvidas, desespero e, quem sabe, numa espécie de remorso.
   Levantou-se vagarosamente. Não queria perder mais tempo naquele lugar repleto de pessoas desinteressantes. O que chamava por sua atenção e, por que não dizer, por seu corpo, encontrava-se bem longe dali, provavelmente encolhida e submetida às suas vontades. Dirigiu-se até a professora Russel, coordenadora dos dormitórios femininos, e, respeitosamente, perguntou-lhe se poderia dar uma rápida passada pelos aposentos terceiro anistas. A velha achou estranho, mas, confiando tolamente em Sebastian, disse-lhe que tinha sua permissão.
   Saindo do salão, White começou a subir as escadas, indo para o andar dos dormitórios. Caminhava sem pressa... o jantar havia começado não fazia muito tempo, portanto nenhum estudante inconveniente poderia atrapalhar-lhe o objetivo. Subiu mais alguns lances de escada, passando por quadros que não notavam sua presença sorrateira e camuflada pelo negrume da capa. Pensava. O peito pesava... sentia olhos lhe encarando, cheios de reprovação e repulsa. Puxou para cima o colarinho do casaco pesado e negro, cobrindo parte do rosto e escondendo a pele alva, a única claridade em seu vulto negro e esvoaçante. Sabia que o que fazia era errado... era humilhante, vergonhoso, digno de asco. Odiava Úrsula. Aquela aluna do inferno havia lhe enfeitiçado de alguma forma, utilizando artimanhas que não continham poções ou venenos, não usavam varinhas ou necessitavam de palavras. Úrsula só poderia estar utilizando influências demoníacas, pois fizera-o esquecer tudo o que lhe era mais marcante: White deixara de lado o orgulho, a dignidade de não se envolver com alunos por ser um professor, a castidade que jurara manter por ser um padre, e, o mais importante, a garota fizera com que o professor odiasse a si mesmo mais do que já o fizera a vida inteira. A aluna o tornara um monstro maior do que já era, e por isso Sebastian a odiava tão intensamente. Úrsula era sensual, confiante e, durante os oito anos em que estivera na escola, desafiara o professor inúmeras vezes, deixando-o, em algumas ocasiões, sem palavras e entorpecido. Sebastian White havia, como um todo, sido dominado pela repulsa, que, explodindo em seu corpo, foi jogada para fora de maneira desonrosa e humilhante, fazendo com que o ódio se transformasse em desejo, puro desejo. White descobrira que só seria capaz de subjugar Úrsula com seu corpo, fazendo dela uma garota indefesa, miserável e incompetente.
   Sentia raiva de si mesmo, e, conforme andava, apertava os braços, enfiando as unhas no pano grosso, procurando ferir-se o máximo que podia. Sabia que não era sua culpa, que a aluna maldita havia lhe encantado e que, portanto, ela própria era a responsável pelo que acontecia, porém era incapaz de deixar de lado o remorso, tendo a consciência de que era um fraco, um tolo, um monstro. Não passava de um vulto negro que vagava pelo mar da angústia, descontando a dor na pele alva de Úrsula, a garota mais forte que conhecera.
   Parou de caminhar quando percebeu à sua frente a grande porta de carvalho que o separava dos aposentos. Olhou para o alto, procurando pelo céu que se estendia além das janelas do corredor. O firmamento não possuía luz... e, encarando-o temeroso, White percebeu a alma negra fundindo-se com a escuridão da noite. Não haveria perdão ao seu espírito, não haveria como escapar à sua sina... era um fracassado, um tolo desesperado, um homem que não soubera dominar os instintos e que agora caia, corrompido e maculado, em direção ao inferno que atormentava seu coração. E ele haveria de dividir tal inferno com ela... a maldita que lhe perfurava o sossego.
   Em movimentos calmos e precisos, girou a maçaneta sem fazer barulho e a porta abriu-se, revelando a passagem para um cômodo escuro. Cruzando a abertura, adentrou o dormitório cinzento e frio, e, silencioso, procurou ao redor. Lá no canto, próxima a uma janela e de costas para a porta, encontrava-se a garota mais bela que conhecera, a mulher mais ousada que já tivera a capacidade de tocar, a aluna mais estúpida a quem tivera o prazer de ofender. Úrsula não o ouviu entrar, tão entretida estava em seu choro intenso. Foi assim que o professor conseguiu aproximar-se aos poucos, sem fazer barulho, de modo sorrateiro e invisível. White fundia-se com as sombras e caminhava como um vulto negro; foi apenas quando já se encontrava a centímetros de distância de Úrsula, que a garota pôde perceber o farfalhar do pano negro. Olhou para trás, mas, antes que pudesse sequer pensar em defesa, sentiu o coração palpitar demasiadamente forte e, prendendo a respiração, veio ao chão quando a sombra que a rodeava amarrou rápida e firmemente seus pulsos e quando uma mão forte lhe tapou a boca, logo a vendando com uma fita.
   Estática, presa pelos pulsos por uma forte corda, Úrsula encontrava-se de rosto no chão, virada de lado, com os olhos arregalados presos em White. Não poderia acreditar... o maldito homem procurava-a até mesmo em seus aposentos, onde deveria estar segura, longe das detenções onde o professor poderia fazer dela o que quisesse. A respiração descompassada demonstrava seu desespero em tentar desvencilhar-se das amarras, embora seu intelecto lhe dissesse que isso era impossível. Olhava para seu carcereiro: este também se encontrava imóvel, embora corda nenhuma o prendesse, e mantinha o rosto duro, amargo, transbordando ódio; Úrsula sentia que White poderia matá-la com aquele olhar tão cheio de repulsa, tão intensa era a aura negra ao seu redor. Era um homem cruel... nunca pensara que um dia pudesse conhecer uma pessoa com coração de pedra, mas ali estava, à sua frente, o ser humano mais sem humanidade que já vira. Já não chorava mais. Pensava no que ele poderia lhe fazer. E sentiu muito medo... embora o professor a humilhasse intensamente ao observar sua pálida nudez, ao passar os dedos em algumas partes de seu corpo e ao beijar-lhe forçadamente os lábios, ele nunca passara disso, nunca demonstrara intenção real de invadir-lhe ainda mais profundamente a carne e o íntimo, de rasgar-lhe definitivamente a dignidade e a honra. Mas agora temia, porque jamais pudera sentir de maneira tão palpável a aura negra e repleta de demônios de Sebastian. Aquele homem ali, apenas parado em sua frente, provocava-lhe mais temor do que já o fizera durante todas as sessões de tortura que reservara para a aluna nas obscuras salas de castigo.
   O professor pensava. Estava onde queria estar, fizera o que deveria fazer, mas não sabia qual seria o próximo passo. Úrsula não desgrudava seus belos olhos de sua fronte, e as lágrimas secas acentuavam ainda mais a cor mel de sua íris. Encarou-a também... ainda que demonstrasse muita calma, White sentia em seu peito o maior turbilhão que enfrentara em toda sua vida miserável. Queria aquela garota... a desejava mais que qualquer outra coisa que pudesse se recordar. Ansiava por tocar sua pele, ferindo-a com as unhas... pedia por seus cabelos, puxando-os com os dedos... queria sentir seu cheiro, tapando-lhe a boca para evitar escândalos. Queria humilhá-la para sentir-se menos culpado do sofrimento que lhe causava, ainda que isso talvez não fizesse sentido. E a odiou... tão intensamente que, franzindo o cenho, apertou os dentes e cerrou os punhos. Queria Úrsula morta !!! Aquela aluna mexia com sua cabeça, estragava-lhe o bom senso, destruía sua sabedoria. White torva-se cada vez menos humano. Parecia-se mais com um vulto negro, composto por ódio, desejo, e lamúria. Precisava macular aquele rosto tão cheio de vivacidade, tão repleto de coragem e ousadia. Úrsula precisava pagar um preço alto por ter batido de frente com o professor. Pagaria por ter enfeitiçado tão demoniacamente um sacerdote puro e fiel à Deus.  Não tinha esse direito... a garota maldita. Merecia a dor, era digna de asco.
   Desviou o olhar, levando inconscientemente uma das mãos à testa. A frieza de seus movimentos começou a morrer, conforme White perdia o ritmo calmo de sua respiração. Agora parecia ansioso, sem saber para onde olhar, como se procurasse por alguma resposta no negrume do céu da noite que se estendia pela janela. Úrsula, ainda presa e dominada pelo medo, estranhou aquela súbita mudança no professor, que, sempre grotescamente desumano, nunca demonstrara qualquer sinal de vacilo ou hesitação. Porém, antes que pudesse se perguntar o porquê daquela inesperada reação, assustou-se com o movimento brusco do vulto negro, que a segurou firmemente pelos braços e colocou-a sentada na poltrona de onde caíra com a chegada do professor.
   Sebastian agachou-se em frente à Úrsula. Transtornado, observou atentamente os traços de sua face. A garota estava feia... as bochechas manchadas de choro tiravam-lhe a cor rosada, os cabelos desalinhados não caiam bem no contorno de seu rosto, o olhar aflito não transmitia mais coragem e caia temeroso. Elevou a mão e segurou seu queixo, roçando os dedos frios em sua pele alva. Não fazia mais o menor sentido. A jovem não possuía mais força alguma, havia definitivamente perdido o brilho e, pouco a pouco, transformava-se em um vulto negro como ele próprio. Sem perceber, White soltou um riso fraco, breve e rouco, enquanto sentia o peito aliviar-se. Seu objetivo havia, afinal, sido cumprido. Olhando hipnoticamente para Úrsula, percebeu que não havia mais a necessidade de avançar, de satisfazer o seu desejo. A garota, tão destruída e com o olhar tão cheio de pavor, estava morta, sua alma havia se enegrecido de maneira irreversível e, por isso, White sentiu todo aquele ódio e asco esvaírem-se lentamente de seu coração podre. E agradeceu mentalmente, enquanto apertava os lábios e procurava com todas as forças não deixar uma lágrima trêmula descer por sua face. A garota havia sofrido de tal forma que o professor não teria de possuir seu corpo por completo para perfurar toda e qualquer felicidade que viesse a surgir naquele pobre coração... Finalmente, White pôde livrar-se de toda aquela angústia, porque não mais queria a garota: não tinha o menor interesse por uma garota morta.
   Levantou-se cambaleante. O remorso e a culpa que há pouco dominavam o seu peito foram se aquietando, permitindo que o professor respirasse mais calmamente. Contudo, não haviam de todo ido embora. Ainda que Sebastian não tivesse ido até o fim, todas as humilhações que causara à Úrsula permaneceriam eternamente em sua memória, assim como a certeza de que ele nunca seria nada além de um porco, um tolo incompetente, um homem levado por seus instintos. A garota o havia transformado em demônio e, agora, tornava-se um demônio também: ambos seguiriam seus caminhos com as almas tão negras quanto o ponto mais obscuro do inferno, e jamais se esqueceriam daqueles dias cheios de ódio.
   Úrsula observou seu agressor virando-se de costas, logo depois que o mesmo puxou com força a fita que lhe tapava a boca e afrouxou o nó das amarras que lhe prendiam os pulsos. White caminhou até a janela e jogou a corda noite afora, indo em seguida para a fenda que daria nos corredores do colégio. Não conseguia entender. O professor estava prestes a lhe cortar, sabia disso quando sentiu o corpo tremer ao ser observado pelos olhos negros e doentios de Sebastian. Mas agora ele saia, em silêncio, sem dizer-lhe nada, sem humilhar sua carne mais uma vez. Ficou aflita, confusa, aliviada e, estranhamente, infeliz. Esperava pelo pior... tinha a certeza de que White a dominaria de vez naquela noite e, para tanto, havia preparado sua mente e coração naqueles breves minutos em que ficou estática pela força das amarras. Mas agora todo aquele seu preparo ia por água abaixo. Será que o maldito planejava-lhe algo pior que aquilo? Talvez tivesse desistido por temer que alguém voltasse para o dormitório antes do final do jantar, e, provavelmente, tentaria novamente outra noite, ainda mais raivoso por não ter tido a oportunidade de ferir-lhe quando quis. Mas logo se lembrou do estranho olhar do sacerdote... um olhar repleto de alívio e exaustão. Aquilo contrastava muito com o ódio que ele emanara ao chegar aos aposentos. Mas agora o via indo para longe e em passos decididos. White parou em frente à saída e levou o dedo indicar à boca, fazendo-lhe um gesto de silêncio. Lançando um último olhar à aluna, o professor virou-se e saiu, deixando Úrsula sozinha, chorosa e completamente incrédula.
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   Deitado em sua cama, Sebastian observava sem atenção a parede rústica de seus aposentos. Sabia que seu fim em breve chegaria, mas não queria preocupar-se com isso agora. Seu peito estava cansado, sua alma torva-se ainda mais amarga. Os olhos negros piscaram com sono... precisava descansar, recuperar-se para o dia de amanhã. E levantaria mais leve, já que todo o ódio pungente que estourava seu coração havia murchado, deixando apenas o peso do remorso e da culpa que, embora também muito terríveis, eram, ao menos, mais fáceis de carregar. Deus haveria de perdoar seus pecados... E sentindo o vento noturno roçar em seu rosto, adormeceu.
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   Úrsula abriu a porta pesada à sua frente. Estranhou ao perceber que os aposentos de White não estavam trancados... Talvez ele estivesse tão atordoado com o que acontecera nos dormitórios das alunas que não tenha sequer prestado atenção em trancar a porta. Olhou ao redor: uma sala gélida e sem vida, repleta de prateleiras; uma enorme mesa forrada de papéis encontrava-se no centro do ambiente e, logo ao canto, uma lareira ardia fraca, com a lenha velha já quase em seu fim; ao fundo, uma segunda porta, semiaberta, provavelmente daria no ninho particular do próprio demônio.
   Adentrou vagarosamente. Perto da porta, havia a grande cama do professor, que se encontrava deitado, envolto em grossas cobertas e de costas para a entrada do quarto. Úrsula parou por um momento, observando o sono tranqüilo do maldito... aos poucos, sentiu o peito inflar-se, mais uma vez, de ódio. Há dias que não dormia, atormentada por pensamentos sombrios, e ali estava, sonhando como um anjo, o maior filho-da-puta que já tivera o desprazer de conhecer. Caminhou sobre as pontas dos pés, indo até o lado da cama onde estava o rosto de White. Agachou-se ao seu lado, observando o rosto macilento do homem, semiescondido por uma camada de cabelo. Franziu o cenho e, tentando ao máximo não fazer barulho, começou a chorar. Sentiu vontade de cuspir naquele semblante hediondo, mas tal feito acabaria por despertar o desgraçado e controlou-se. Sentiu calafrios... desejava tão intensamente aquele momento que não conseguiria mudar de idéia, mas algo em seu interior gritava e lhe pedia por sabedoria. Úrsula ouvia o seu peito pedir que fosse embora, dizendo-lhe que ela não deveria tornar-se um monstro como White. Seria Deus? Mas a aluna já não mais podia sentir em seu coração sequer resquícios de humanidade. A alma, já negra, não enxergava luz e, embora caminhasse pelo vale das sombras e da morte, temia todo e qualquer mal, porque Deus já não estava mais com ela.

   Ainda agachada, Úrsula, sem pensar duas vezes, retirou de dentro das vestes um facão, roubado sorrateiramente das cozinhas naquela noite. A arma era grande, afiada, e servia para abater animais... bichos bestiais como aquele que dormia na cama. Em um único movimento, passou a lâmina afiada de um lado a outro do pescoço do professor. O sangue jorrou em seu rosto, escorreu para o cobertor e tingiu o chão de vermelho. Porém o homem sequer se moveu... não abriu os olhos para encarar sua assassina, não demonstrou dor ou aflição. Morria sem lutar, sentia a alma negra e pútrida abandonando o corpo através do incessante derramar de sangue. Úrsula jogou-se ao chão, não mais contendo o choro intenso, amargo e asfixiante. Lançou a arma para longe, sentindo as mãos tremerem violentamente. Esse era seu fim. Mas havia de levar junto o homem que a puxara para o inferno. Não aceitaria ter o coração morto sem que pudesse levar junto o coração negro daquele homem impiedoso e cruel.
   E ali ficou durante horas... encarando tristemente os olhos cerrados de Sebastian. Um fim amargo para um homem brilhante e para uma garota que tinha grandes planos para o futuro... O mundo se fechava à sua volta. As paredes diminuíam, o aposento desmoronava em sua cabeça. Não conseguia imaginar como seria sua vida dali para frente. Infelicidade, lamúria, terror. Sua vida já não era mais uma dádiva, e sim uma prisão que a ligava às más lembranças. Então, de olhar perdido, Úrsula sentiu o coração negro palpitando cada vez mais devagar, até o ponto em que, durante um último suspirar, ela pendeu o pescoço sem vida. Os olhos morreram abertos, ainda observando o professor e sacerdote. Duas almas negras apodreciam naquele lugar, agora encoberto de ódio e pesar. Tais almas jamais seriam perdoadas. Tais corações nunca voltariam a ver a luz. O desespero de seus pecados ia embora junto com a noite, fundindo-se ao céu negro que se estendia lá fora.
                                                                                                                                             Por: Ayla Pupo