O Delator

 

 

   Ele recebeu um dom, o de escutar a verdade e guardá-la em sua mente. Desde criança percebia as mentiras que rondavam cada relação, os segredos que não eram contados e as falsidades escondidas em sorrisos de simpatia. Ele percebia e realidade de outra maneira, melhor, ele percebia duas realidades em uma só. A das mentiras contadas para ocultar os segredos e a das verdades rodeadas de desejos e culpa.
   Mundo estranho e duplicado, se perguntava se toda a verdade viesse a tona, se as mentiras não fossem mais contadas, se as pessoas simplesmente tirassem as máscaras e mostrassem suas verdades, o que aconteceria?
   Começou a imaginar um mundo com mais verdade, um mundo que fosse branco e pacífico, ninguém escondendo nada, ou pelo menos, enfrentando a verdade. Seu dom era para ser usado e poderia fazer do mundo um lugar melhor, ele poderia fazer real o mundo que sonhara, mas isto custaria tantas lágrimas que resolveu não agir.
   Já adulto, o peso em sua consciência era grande, passando a vida escutando as mentiras e vendo traições bem a sua frente. Se deparava com um mundo cruel e covarde, chegou a não suportar muitas vezes e descontava a raiva em si próprio, derramando seu sangue pelos outros. Outras horas se perguntava:
   - Quantas gotas de sangue valem por uma lágrima? Meu martírio é válido por este mundo obscuro? Estou sacrificando um dom para manter um mundo em ruinas, tudo isto por que? As pessoas não encaram as próprias culpas e tem medo do julgamento dos próprios atos, mas continuam fazendo-o. Quantas lágrimas valem um mundo melhor?
   Saturado de perturbações em sua mente, que já não aguentava mais guardar a verdade e ver mentira. Beirando a loucura, decidiu que não derrubaria mais nenhuma gota de sangue de si. Resolveu contar a verdade, sem medo do que lhe aconteceria depois. Expos traições, corrupção, tráfego e até assassinatos. Mesmo sendo ameaçado de morte por covardes, sentia que seu sufoco estava terminando.
   Um dia, levou um tiro no peito, morte certa. Viu tudo ficar mais claro, uma luz dominava o espaço e não há mais nada que ele poderia fazer por aquele mundo, foi isto o que ele pensou. Tinha certeza de que não iria pro céu, pois fez muitos chorarem e trousse dor e sofrimento para a vida de muitos. Então ele escutou uma voz, doce e calma, usando um tom grave disse:
   - Não posso deixar você entrar no céu, devido tais circunstâncias, mas usando o dom que lhe foi entregue por mim, te considero meu filho e seu martírio muitas vezes abriu os portões. Te entrego quatro asas para vir até meu reino sem ter que passar pelos portões dourados.
   As asas saíram de suas costas, duas de cada lado, seu ferimento foi curado, seus olhos embranqueceram e se tornou anjo. Antes de levantar voo, um buraco negro abriu no chão e cinco demônios saíram dele, surpreendido por eles, não teve como escapar, foi capturado e no inferno lhe foi arrancado as duas asas direitas, sua boca foi costurada e suas orelhas cortadas, depois devolvido ao plano terrestre para sofrer.
   Não conseguia voar com apenas duas asas de um lado só, não poderia mais revelar a verdade, pois sua boca estava selada para sempre, seus ouvidos não escutavam mais as mentiras, mas seus brilhantes olhos ainda viam a falsidade retornar a reinar. Percebeu seu martírio em vão, era considerado como cruel e não como salvador.
   Sugado pela depressão, sem ter para onde ir ao morrer, resolveu se esconder, julgando ser monstro, foi para o esgoto e lá viveu junto dos ratos, não via as mentiras de onde estava e o mundo parecia ser um lugar melhor lá embaixo. Considerou o esgoto melhor que o resto do mundo. Aquele odor não parecia ser tão horrível quanto as mentiras contadas.
 

 

 

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